segunda-feira, 22 de março de 2010

Novas equipes

Muito obrigado a todos que leram, divulgaram e comentaram o relato. É um ótimo estímulo para continuar trabalhando.

Tivemos uma reunião em Campinas com o Ricardo Afonso Ferreira, fundador dos Expedicionários da Saúde, para decidir o futuro do nosso trabalho no Haiti. Vamos enviar uma equipe nos moldes da minha (ortopedistas, cirurgiões, enfermagem...) para Les Cayes todo começo de mês para ficar lá por 1 semana. Assim poderemos dar seguimento nos pacientes operados, tratar sequelas de trauma, regularizar cotos de amputação para recebimento de prótese, tratar as infecções, etc. É uma grande notícia!

Aqueles que se interessarem em participar das próximas equipes podem me escrever aqui nos comentários do blog deixando contato. Precisaremos também de fundos para sustentar o projeto, seja vindo de pessoas físicas, seja vindo de empresas. Lembro aos que desejam ir ou doar que pessoa nenhuma recebe dinheiro no projeto. É totalmente voluntário. Os fundos são para custear basicamente transporte, estadia e material médico-cirúrgico. Mas, se têm o espírito de ajudar e abrir mão de conforto, família e férias por uns 10 dias, eu garanto que o ganho pessoal é muito maior que qualquer dinheiro e é intransferível.

Abraços a todos,

Lucas

domingo, 14 de março de 2010

Missão Expedicionários da Saúde/AMB Haiti

Caros parentes e amigos,

Cheguei ontem do Haiti e volto a escrever um daqueles longos relatos de viagem, coisa que não fazia desde os tempos de Estrada Real e de Exército na Amazônia. E pela falta de prática de quem só tem lido e escrito coisas ortopédicas, peço vossa paciência e compreensão.


Na quinta feira, 25 de fevereiro, partia do aeroporto de Guarulhos-SP uma equipe de 15 pessoas, entre eles três ortopedistas, quatro anestesistas, uma cirurgiã vascular, uma cirurgiã pediátrica, quatro enfermeiros, um técnico de radiografia e um logístico rumo a Les Cayes-Haiti. Éramos a 3ª equipe da missão organizada pela AMB (Associação Médica Brasileira) – que concentrou os esforços e doações das sociedades brasileiras de anestesia, ortopedia e cirurgia – e pela ONG Expedicionários da Saúde – que há cerca de 7 anos organiza missões na Amazônia para atendimento dos indígenas in loco e que domina toda a logística de como montar e fazer funcionar um hospital cirúrgico em locais improváveis e que também financiou esta missão por doações de iniciativas independentes.

3ª Equipe AMB/Expedicionários da Saúde a embarcar para o Haiti


Pernoitamos a primeira noite tranquilamente num hotel no Rio de Janeiro, para ir cedo ao aeroporto do Galeão Velho, base aérea carioca da FAB. Depois de entendimentos e desentendimentos com os militares (tristeza ter que trabalhar com este povo de novo!), saímos com umas 8 horas de atraso para Porto Príncipe num avião Hércules, destes cargueiros militares barulhentos cheio de suprimentos e donativos, quase sem espaço para passageiros. Paramos em Roraima, minha velha Boa Vista, para abastecimento e depois de um total de 15 horas pousamos em Porto Príncipe.

O convidativo vôo do Hércules da Força Aérea Brasileira


O microônibus com 2 brasileiros e nosso guia faz-tudo haitiano Felipe estavam lá nos esperando. Sem paradas no caminho ou muita conversa rumamos para Les Cayes, onde estava sediada a nossa missão. Um breve vislumbre de ruínas, muita gente andando nas ruas, mercados caóticos e filas abarrotadas de mulheres esperando doação de alimentos nos deu a sensação de conforto por estar deixando Porto Príncipe. Quando saíamos da cidade subindo as montanhas do sul e começávamos a ter a visão mais tranqüila da zona rural, o pessoal de Les Cayes nos liga dizendo que chovia a cântaros, que o nosso acampamento e hospital estavam inundados e o nosso trabalho se tornara impraticável. Seguimos viagem com o pensamento de que chegando veríamos o que podia ser feito. O que não contávamos é que no meio do caminho a chuva nos pegaria, levando a imensos alagamentos na estrada, queda de barreiras e trânsito caótico com carros e caminhões empacotados de gente e coisas de mudança invadindo a contra-mão impedindo qualquer chance de ir ou vir. Depois de ter o chão do nosso ônibus invadido pela água barrenta, arriscado a segurança passando por correntezas fortes e crescentes e ficarmos parados por cerca de 5 horas cercados por água, gente correndo e curiosos nos olhando, o Exército Uruguaio – representante da ONU naquela região do país – fez o favor de abrir um desvio e coordenar o trânsito liberando o caminho até nossa nova casa.

Port-au-Prince. Primeiras impressões.

Alagamentos a caminho de Les Cayes


Les Cayes é uma cidade a 200km de Porto Príncipe, de cerca de 80 mil habitantes e que foi pouco atingida diretamente pelo terremoto. Apesar de também ter sentido o tremor, apenas 2 casas caíram. A população, porém, dobrou de tamanho após o desastre de Porto Príncipe, com milhares de pessoas rumando para os acampamentos distantes, indo para a casa de parentes ou simplesmente migrando entregues à própria sorte. É claro que quando se fala de números tudo são perspectivas, já que não há qualquer possibilidade de se fazer um senso no Haiti, mas fala-se que Porto Príncipe tinha 3 milhões de habitantes. Cerca de 300 mil morreram no desastre e outro 1 milhão migrou para o interior ou para a República Dominicana, no lado leste da Ilha de Hispaniola. Então está aí, o lugar que arrumaram para ficarmos tinha mantido a sua estrutura de funcionamento, mas tinha os pacientes prejudicados pelo terremoto que procurávamos. E o local de trabalho era no hospital do Brenda Strafford Institute, uma ONG Canadense que realiza atendimento e cirurgias de oftalmologia e otorrino no Haiti. Com o desastre, o hospital abriu as portas para a ortopedia brasileira, que ganhou duas salas de cirurgia e uma enfermaria para tratar inicialmente as vítimas do terremoto e, como não poderia deixar de ser, as vítimas de trauma agudo do dia-a-dia de uma cidade com trabalhadores braçais, motoqueiros e muita gente nas ruas caóticas.

Brenda Strafford Institute, Les Cayes


Pois bem, chegamos ao nosso Hospital em Les Cayes no sábado (cerca de 48 horas depois de sair de São Paulo), recebemos o comando da missão e festejamos com os colegas que lá estavam e que partiriam no dia seguinte. Encontramos o hospital já sem a água da chuva, mas ainda sujo pela inundação. O dia seguinte seria de muito trabalho pesado, ficando a maioria com a limpeza do hospital e do alojamento e com separação dos materiais salvos e perdidos. Os três ortopedistas recém chegados estávamos encarregados da atenção aos pacientes, trabalho também pesado, pois a equipe anterior tinha seis para fazer o mesmo serviço. Eu era o único que falava alguma coisa de francês e que tinha um bom inglês, além de ser o único que já teve a honra de ser residente sênior no glorioso HC-UFMG. Assim sendo a parte de organização do serviço ortopédico ficou na minha mão. A primeira segunda feira foi um dia interessante. Enquanto os dois colegas ficavam no bloco cirúrgico, eu evoluía os pacientes da enfermaria, fazia o atendimento ambulatorial de retornos e de novos pacientes, ia ao centro de esterilização de materiais e depósito para checar no que tínhamos e que precisaríamos, checava as feridas com as cirurgiãs vascular e a pediátrica que ajudavam nas trocas de curativos, tentava informar as enfermeiras locais sobre as nossas condutas e conduzia a reunião clínica noturna para decidir as condutas a serem tomadas nos dias seguintes. Enfim, era R3 de novo. Terminei os dois primeiros dias exausto, mas contente com o trabalho realizado. O resto da turma reconhecia também que o ritmo da ortopedia estava pesado e procurava oferecer ajuda no que pudessem.

Visão parcial da enfermaria ortopédica.


Até que na segunda-feira à noite chegou a cavalaria. Um grupo de 9 americanos – com três médicos, quatro enfermeiros, uma logística e um circulante de cirurgia – chegou e, com toda a modéstia, ofereceu para nos ajudar com o que fosse necessário. Fiquei então mais com a função de organizar o serviço, podendo delegar mais funções, pulando de um lado para o outro e parando para colocar a mão na cirurgia quando fosse possível. Os médicos deles eram gente diferenciada: um ortopedista clínico meio japa com a cara do senhor Miagui que mandava ver no ambulatório; uma ortopedista cirurgiã, que com cerca de 35 anos de idade já era chefe de serviço nos EUA; e um cirurgião de trauma que tratava das feridas infectadas como ninguém. As reuniões clínicas e o passômetro passaram a ser feitos em inglês e tínhamos sempre equipes multinacionais nas cirurgias. Tudo muito prazeroso de se ver e fazer. E acho que foi recíproco. Os americanos mostraram-se muito gratos de poder participar de um serviço já montado pelos brasileiros e estimulados pelas discussões e pelo nosso modo de trabalhar. Ficaram espantados de saber que todos os três ortopedistas eram recém formados e que a maioria das pessoas do time brasileiro havia se conhecido há menos de uma semana. Tudo funcionava com o melhor entrosamento e espírito de coletividade. Ficaram por 4 dias, o que já aliviou muito a nossa barra. Quando se foram, já conhecíamos melhor os nossos pacientes internados, tínhamos começado a esvaziar a enfermaria (quando chegamos havia uns 30 internados) e íamos esvaziando também a lista de pacientes que aguardavam cirurgia fora do hospital.

Cirurgia com equipe brasileira e americana. Osteossíntese de fêmur com placa.


As condutas a serem tomadas, aliás, eram uma coisa interessante e completamente diferente do que estávamos acostumados. Primeiramente, os casos eram únicos, já que havia pacientes com lesões múltiplas, muitas vezes graves, e já com 6 a 7 semanas de trauma. Os pacientes em geral eram desnutridos, o que nos parâmetros laboratoriais se demonstrava pela hemoglobina e proteína baixas e clinicamente pela dificuldade de cicatrização das feridas. Infecções também eram comuns, porém as bactérias não eram das mais fortes já que não estavam tão habituadas aos antibióticos. Tínhamos certos materiais à disposição da melhor tecnologia (substitutos ósseos, gesso sintético, campos e capotes cirúrgicos descartáveis, materiais de curativo que nunca havíamos visto...), mas nos faltavam coisas básicas, como certos implantes ortopédicos. Às vezes até tínhamos os melhores implantes, mas a falta de instrumental cirúrgico adequado e de radioscopia na sala de cirurgia nos impedia de usá-los. Vimos que doações feitas sem organização e a esmo podem apenas consumir recursos, transporte e mão de obra. Antes de tudo precisa-se de organização coletiva, o que se tratando de uma catástrofe nacional em um país paupérrimo e de doações vindas de todo lugar do mundo é extremamente difícil (se não impossível) de se conseguir. Além do mais, não tínhamos certeza da seqüência do nosso trabalho no Haiti. As condutas deveriam ser as mais definitivas possíveis para que os pacientes não precisassem de reintervenção. Bom, isto tudo para dizer que o pensamento clínico tinha que sair de um ponto sem precedentes (pois os pacientes, a situação e os materiais disponíveis eram inusitados. Estes casos não estão nos livros), baseando-se no que sabemos de mais básico da medicina e da ortopedia, para chegarmos a tratamentos criativos com o que tínhamos em mão. Em geral, posso dizer que o resultado foi bem satisfatório.

Visitas aos orfanatos onde parte de nossos pacientes ficavam alojados após receberem alta hospitalar.


Até que, na sala de reunião do alojamento, numa noite quente e regada à cerveja como qualquer outra, nos chama o médico local. Havia chegado uma menina de 9 anos em estado de emergência que, aliás, ele não reconhecera como tal. Perguntou apenas onde estava o nosso técnico de radiologia para fazer um raio-x do tórax. Bom, para abreviar a história, logo nossa equipe tomou conta do caso (mais cinco minutos e ela se iria para outra), lascou-lhe dois drenos de tórax, mandou uma pericardiocentese, suturou a traquéia e estabilizou a menina. Sem respirador artificial passamos a noite revezando na ventilação usando os próprios punhos e o único cilindro de oxigênio que tínhamos. Todos os contatos possíveis foram feitos e, de uma maneira quase milagrosa, o médico local conseguiu um avião para levar a menina para o hospital de campanha que a Universidade de Miami havia montado no aeroporto de Porto Príncipe. Por volta de 11 horas da manhã, a criança embarcava no Cessna PT deixando no solo a maior alegria e sensação de dever cumprido que uma equipe médica pode ter. Passou pela cabeça de todos que ventilaríamos com punho próprio a criança que bravamente recuperamos até o fim da bala de oxigênio e que ela morreria em nossas mãos. No dia seguinte recebemos a notícia que ela estava evoluindo bem e sem percalços. Os tubos já estavam sendo retirados e ela já se alimentava sozinha.

Atendimento no meio da noite a pequena Pauline e sua transferência a Porto Príncipe


E não recebemos esta boa notícia em um momento qualquer. Era domingo, nosso dia de folga merecido e necessário, já que a semana e a menina consumiram o que tínhamos de forças e paciência. Fomos para um lugar chamado Port Salut, com sua praia caribenha de águas claras e areia branca, regada à cerveja gelada e temperada por peixe e lagosta na mesa.



Haiti também é Caribe.


No fim de semana também perdemos dois de nossos anestesistas, que tiveram que voltar antes do resto da trupe. Recebemos, porém, a visita de um integrante e do presidente dos Expedicionários da saúde acompanhados de um cineasta e, como não poderia deixar de ser, da Maitê Proença e sua filha. Ficaram até segunda feira gravando para um documentário, pela parte da ONG Expedicionários, e para o Faustão e programa Saia Justa, por parte da Maitê. Incrível como em Les Cayes ela foi parada por pedidos de autógrafo. “Dona Beija, dona Beija”!!!

(Não precisa legenda)


A segunda semana caminhou bem, apesar da diminuição do contingente médico. O que atrapalhava era a incerteza dos dias que viriam. Quando e como iríamos embora? Haveria outra equipe vindo em nosso lugar? O nosso trabalho dependia disto. Só na terça feira descobrimos que não haveria outra equipe. Os Expedicionários da Saúde se comprometeram a enviar dois médicos na semana seguinte, mas não haveria gente nos rendendo no Brenda Strafford. Deixamos o hospital apenas com 4 pacientes internados, todos ao cuidado do Dr Leger (médico local que faz um serviço incrível há anos. Ele foi adotado por uma família americana quando criança, estudou medicina e voltou para o Haiti depois de formado). Ainda temos uma lista de pacientes que necessitam cirurgia, outra de pacientes amputados que necessitarão de prótese e uma outra de pacientes que já foram operados e necessitarão de reintervenção (como aqueles que estão com fixadores externos).

Homenagem ao Dr Leger com a bandeira brasileira.


A volta não foi menos penosa que a ida. Talvez até mais por termos gasto todo o ânimo e energia que tínhamos. Fizemos um pequeno “turismo de desastre” por Porto Príncipe, uma experiência interessante mas não muito aconselhável, e fomos conhecer a família do Felipe, nosso guia e faz-tudo haitiano. Enquanto esperávamos o Hércules da FAB chegar com o costumeiro atraso, fomos ao hospital de campanha da Universidade de Miami onde, emocionados, encontramos nossa pequena paciente que, já completamente recuperada, saltou aos nossos braços sem desconfiar que houvessem sido nós aqueles que a salvaram há poucos dias. Neste momento era apenas mais uma criança carente haitiana feliz por receber abraços e beijos de brancos alegres. Para baixar a moral da tropa, fomos informados que o tio que havia vindo junto dela no aviãozinho a abandonara, deixando-a para doação. Alegres ou tristes com a visita à menina, esperamos sob um pé de manga e muita poeira o pior vôo de nossas vidas, num Hércules apertado e quente. Vinte e sete horas depois de sair de Cayes, estou de volta a São Paulo. E depois de mais 18 horas dormindo e uma manhã arrumando as coisas, escrevendo para o chefe dos Expedicionários, para os colegas de Cayes e para os americanos, aqui estou eu terminando o mais longo relato de viagem que já escrevi. Apesar de parecer demasiadamente profundo às vezes, ao escrever tudo parece muito superficial. A maior parte das sensações, da convivência com a turma brasileira, haitiana e americana e dos momentos preciosos parece ficar a deriva no mar de palavras e descrições. Enfim, isso é coisa minha e de quem viajou para o Haiti em escombros. Acho que consegui responder a maior parte das perguntas que me fariam e que surgiriam com a conversa, não é?

Despedida do Felipe. Faltou dizer que ele era estudante de diplomacia em Porto Príncipe e teve a escola destruída no terremoto. Os Expedicionários estão tentando a transferência dele para alguma universidade brasileira.


Neste momento, acaba de passar a Maitê no Faustão. Não conseguiu mostrar todo o vídeo com imagens e histórias fantásticas de Porto Príncipe e dos nossos pacientes em Cayes, nem falar direito de como as doações para os Expedicionários da Saúde são importantes. Foi cortada pelo Faustão com comentários inapropriados e pelo diretor porque estava na hora do comercial ou porque o ibope estava caindo. A atração anterior foi um cara sem dentes que se fazia de ridículo ao bater num violão e esganiçar na voz. Pediram para que ele continuasse apesar de o repertório já ter acabado, pois era mesmo muito divertido e fazia a galera rir e aplaudir. Assim somos, moçada... Mais vale o ridículo que chama mais atenção e dá dinheiro. Vou tentando fazer a minha parte já ao chegar à décima segunda página do relato que poucos vão ler até o fim. Se você leu e esta interessado na história, na aventura, no humanitarismo, enfim, na coisa toda, dê uma olhada na página da web dos Expedicionários da Saúde. É:

http://www.expedicionariosdasaude.org.br/

Se você está afim de ajudar mas não é médico, nem enfermeiro, nem logístico faça uma doação. Se já doa para os Médicos Sem Fronteiras, mude a sua doação para os Expedicionários. Vi e vivi a maneira como os caras trabalham. Há anos levam a saúde para o nosso próprio desastre nacional com muita eficiência e qualidade.

Tento agora voltar à vida normal, mesmo não sendo mais tão normal assim.

Abraços e beijos,

Lucas

A pequena Pauline, revisitada no hospital da UM e já recuperada, também manda seus beijos para os brasileiros.